Em defesa da universidade brasileira: impressões contemporâneas a partir da obra de Florestan Fernandes

Fernando-José Martins*

      Recepción: 12/10/21.
    Aprobación: 10/10/22.
     Publicación: 1/06/23.

Resumo

A universidade pública no Brasil tem enfrentado, desde a crise econômica iniciada em 2014, questionamentos e cortes. Os questionamentos são administrativos e tomaram o imaginário social com aderência da opinião pública. O atual governo brasileiro potencializou este quadro, ampliando cortes e intensificando críticas com elementos ideológicos e juízos de valores em relação à universidade. Para contrapor esse “ataque” à universidade, realizaremos uma análise a partir da obra: Universidade brasileira: reforma ou revolução?, escrita em outro contexto histórico, porém com teorizações e análises aplicáveis ao momento atual. É utilizada a análise bibliográfica e uma sondagem dos meios de comunicação para evidenciar as manifestações públicas do governo acerca da temática. Por fim, visualiza a contribuição de Florestan Fernandes para a análise da universidade pública atualmente.

Palavras chave: Estado, público, universidade, Brasil.


En defensa de la universidad brasileña. Impresiones contemporáneas desde la obra de Florestan Fernandes

Resumen

Desde la crisis económica que comenzó en 2014, la universidad pública en Brasil ha enfrentado cuestionamiento y recortes. Los cuestionamientos son administrativos y han tomado el imaginario social con adhesión de la opinión pública. El actual gobierno brasileño potenció esta situación, ampliando los recortes e intensificando críticas con elementos ideológicos y juicios de valor con relación a la universidad. Para contrarrestar este "ataque" a la universidad, realizaremos un análisis a partir de la obra: Universidad pública: ¿reforma o revolución?, escrita en otro contexto histórico, pero con teorizaciones y análisis aplicables al momento actual. El análisis bibliográfico y una encuesta de medios se utilizan para resaltar las manifestaciones públicas del gobierno sobre el tema. Finalmente, visualiza la contribución de Florestan Fernandes al análisis de la universidad pública actual.

Palabras clave: Estado, público, universidad, Brasil.


Defending the Brazilian university. Contemporary reflections based on the work of Florestan Fernandes

Abstract

The public university in Brazil has faced, since the economic crisis that began in 2014, many questioning and cutbacks. The criticisms use to be administrative and have taken over the social imaginary with the adhesion of public opinion. The current Brazilian government has potentiated this picture, expanding cutbacks and intensifying criticism with ideological elements and moral judgments regarding the university. To respond to this "assault" on the university, the authors carry out an analysis based on the book Public University: Reform or Revolution?, written in another historical context, but with theorizations and analyses that are applicable to the present moment. They make use of a bibliographical analysis and a survey of the media as well to highlight the public manifestations of the government about this issue. In conclusion, this article visualizes the contribution of Florestan Fernandes to the analysis of today's public university.

Keywords: State, public education, university, Brazil.


A universidade enfrenta, no momento,
a pior crise que já se defrontou
durante sua curta formação no Brasil.

Florestan Fernandes


Introdução

O presente artigo se objetiva na função de realizar uma argumentação que embase a defesa da universidade pública no formato em que ela se apresenta na sociedade brasileira hoje, com sua qualidade, de caráter público e gratuito, laica e universal. A motivação dessa defesa se pauta nas recentes e reiteradas manifestações e ações públicas do Estado nacional, seja por meio de declarações dos representantes de estado, seja em ações do judiciário em relação às universidades. A título de informação e exemplo, faz-se necessária a menção a casos desses “ataques” identificados. No ano de 2018, durante o processo eleitoral nacional, muitas universidades foram alvos de ações policiais em virtude de manifestações políticas1 e, ainda que os organismos responsáveis, no caso, o Supremo Tribunal do país, posteriormente tenham rechaçado tais ações, o Estado brasileiro ainda insiste, por meio da Advocacia Geral da União, na criminalização de práticas no interior das universidades.2 Esse mesmo debate eleitoral trouxe à tona, nas mais diversas expressões que postulavam o poder, inclusive na postura que se sagrou vitoriosa no embate da presidência do Brasil, uma tendência à superação da gratuidade do ensino superior no país. Laconicamente como em todo o plano a proposta de governo em curso trazia a seguinte referência para as universidades: “Devem desenvolver novos produtos, através de parcerias e pesquisas com a iniciativa privada”.3 Ainda é possível ressaltar declarações de ministro de Estado, como a de que a universidade “não deve ser para todos” ou a de que ela deve ser reservada para uma elite intelectual,4 mostras de tais ataques. De maneira mais formal, fora anunciado um programa do Ministério da Educação: “Future-se”, propõe aumentar a autonomia financeira das universidades por meio da liberdade para captação de recurso, o que é tido como um caminho para a desoneração do Estado para com o financiamento do ensino superior brasileiro, entre outros riscos a serem analisados. Exatamente por representar o lado mais ideológico do governo, os titulares da pasta não se sustentaram no exercício da atividade ministerial e foram substituídos por Milton Ribeiro, mais discreto, porém alguém que ratifica a linha de análise presente, com afirmações de que a universidade no Brasil “deve ser para poucos”5 e afirmar que há excesso de instituições universitárias no país.
          O formato eleito para contrapor tais agressões à universidade e reafirmar pressupostos básicos da universidade pública brasileira é o diferencial da proposta aqui efetuada. A base de diálogo, de argumentação e de proposições será o pensamento de Florestan Fernandes, em particular sua obra: Universidade Brasileira: reforma ou revolução?. Essa obra é composta por uma coletânea de seus escritos sobre o tema em diversos formatos e tem sua publicação, em outros veículos, datada já de 1965 em diante. Em que pese a distinção temporal, a singularidade dos momentos históricos distintos, há uma sólida atualidade nos argumentos já apresentados por Florestan à época dos seus escritos e os que podem ser utilizados para a defesa atual da universidade pública. Uma análise precipitada pode inferir que tais coincidências devem-se ao fato da proximidade entre as características políticas de ambos os momentos, o que não é possível tornar crível por haver distancias históricas, sociológicas e políticas significativas acentuadas pela dinâmica temporal; mas o leitor poderá constatar que as aproximações, ainda que salvaguardadas as diferenças dadas por tal distância, são também significativas. Vamos procurar expor sobre isso no desenvolvimento do texto.
          Embora efetuada a demonstração da centralidade da análise contida no texto, bem como uma metodologia de exposição, dois elementos basilares são constituintes e influenciadores dos apontamentos, tanto da obra analisada de Florestan Fernandes, quando na parametrização de ações necessárias para a defesa da universidade pública. O formato de universidade que temos hoje na América Latina e no mundo na contemporaneidade tem, em maior ou menor medida, influência da reforma universitária de Córdoba, que tem como marco a publicação da Carta de Córdoba de 1918. Elementos como a autonomia, a centralidade do movimento e da participação estudantil, a relação com a sociedade ou com a extensão universitária, a universalidade são premissas que se ampliam após o referido movimento. E, ainda, incidindo diretamente na temporalidade da maioria dos textos de Florestan, encontra-se o movimento de maio de 1968, que articulou:

movimentos sociais, os movimentos de direitos civis, os movimentos estudantis, os movimentos guerrilheiros da América Latina e os movimentos libertários da antiga Europa do Leste. Em todos eles, o ponto de partida, se não foi a universidade como instituição, foi a universidade como irradiadora de conhecimentos e de práticas novas, muitas das quais visando à transformação da própria universidade, para o seu bem ou para seu mal (Chauí, 2001: 18).

          Pode-se constatar que o maio de 1968 reafirma uma série de premissas já expostas no movimento de Córdoba e retoma a necessidade de uma reforma da universidade, no Brasil, na América Latina e nas demais regiões do mundo. O contexto de reformas (ou revoluções), indicado nesses dois movimentos é tomado aqui como chave para o momento universitário atual brasileiro, muito mais como resistência do que como ares de mudança. Resistência por elementos que avançaram na consolidação de uma ainda frágil instituição, como é a universidade pública, mas que precisa se firmar e manter seus princípios de autonomia, qualidade, gratuidade e universalidade. E, ainda que não conste dos textos escritos de Florestan Fernandes referências diretas a tais movimentos, temos a clareza de que os pressupostos do questionamento sobre a universidade brasileira: “reforma ou revolução” dialogam plenamente.

Contribuições de Florestan Fernandes para a educação

A contribuição de Florestan Fernandes para vários ramos da ciência, principalmente a sociologia e educação, são inegáveis. Há um conjunto relevante de obras que debatem, sistematizam e aplicam as contribuições de Florestan. Inúmeras biografias elaboradas por grandes intelectuais brasileiros como Antônio Candido, José de Souza Martins, Octavio Ianni, Barbara Freitag são facilmente acessíveis. O centenário de sua existência no ano de 2020 intensificou a produção sobre sua obra, com uma série de análises, eventos comemorativos, bem como reedições de suas obras. Não se objetiva, neste curto espaço de um artigo, realizar um aprofundamento sobre usa obra; contudo, utilizaremos, principalmente, suas contribuições para os estudos sobre educação e, com maior ênfase, no debate aqui delimitado, sua sistematização sobre a universidade brasileira. Assim, as referências aqui listadas não visam a efetuar uma revisão sistemática sobre o tema, mas sim, apoiar os principais argumentos aqui defendidos, considerando os limites do gênero artigo científico
          O conjunto de produções sobre Florestan e sua própria obra superam em muito as poucas e sintéticas linhas que faremos sobre sua contribuição para a ciência em geral e a questão da universidade em particular, mas indicam diálogos importantes para a temática. Seus estudos pioneiros já destacavam a “condição colonial permanente” (Fernandes, 2013), dialogando com questões cruciais da realidade brasileira, como o racismo, por exemplo. Fica notabilizado o debate sociológico, com sua produção sobre o capitalismo dependente, no qual insere o debate sobre América Latina e em especial sobre o Brasil e o funcionamento das sociedades desiguais, periféricas, cujas características persistem nos dias atuais.
          Sistematizando a condição de classes sociais, em diversas abordagens, sempre sob o prisma rigoroso do materialismo histórico e dialético, Florestan apresenta uma sistematização imprescindível para a sociologia em sua obra: A revolução burguesa no Brasil (Fernandes, 2020), que debate os conceitos já mencionados com um olhar mais próximo do Brasil, mas também insere uma série de reflexões necessárias para o presente artigo. O movimento das classes dominantes de “revolução dentro da ordem”, no qual as máximas de “mudar para não mudar” prevalecem, é correspondente às chamadas contrarreformas que se encontram em voga no cenário educacional como um todo, mas, principalmente, no quadro da educação superior no Brasil. Soma-se também aqui o conceito de heteronomia, que será abordado mais adiante, igualmente necessário para a compreensão sobre universidade. A obra de Florestan contribui com muitos aspectos aqui não abordados para esta e demais questões fulcrais de nosso país e realidade, mas como já fora dito, não temos intenção de esgotar aqui tais contribuições.
          Especificamente sobre a educação, Florestan militou e sistematizou sobre a temática. Em sua obra, como um todo, ele não deixa de tangenciar o processo educativo mais amplo, porém, ele publica também reflexões voltadas principalmente sobre à educação. Ao sistematizar a contribuição do autor para a educação brasileira, Saviani (1996) sistematiza quatro aspectos da relação e produção do autor com o debate sobre educação, os quais ele relaciona com uma adjetivação sobre do próprio Florestan, a saber: o educador, o cientista, o militante e o publicista. Em todas as dimensões, Florestan Fernandes evidencia uma defesa intransigente da escola pública como direito: “Florestan propugnou que segue sendo necessário ter como horizonte o direito de todos os que possuem um rosto humano à educação ... como dever do Estado, por meio da universalização da escola pública, gratuita, laica, em todos os níveis” (Leher, 2012: 1170). Em sua obra: “O desafio educacional” que reúne contribuições específicas para o cenário educacional, reeditada em virtude de seu centenário, ganha uma apresentação de Gaudêncio Frigotto, que destaca a pertinência de suas observações à época e a reedição da mesma para o cenário brasileiro atual. “Por fim, a nova edição de O desafio educacional surge na sociedade brasileira num momento de profunda regressão social e da educação. Suas análises sobre a força de dominação e de violência da classe burguesa brasileira, seu caráter heteronômico e contrarrevolucionário ganha atualidade” (Frigotto, 2020: 33).
          O presente excerto é crucial para compreender a contribuição e a atualidade da obra de Florestan Fernandes para a educação. Frigotto, além de se remeter para o cenário educacional atual, no qual as considerações de Fernandes são pertinentes, faz uma síntese das análises e categorias centrais que incidem diretamente no objeto proposto para o presente artigo: a defesa da universidade brasileira.



Capitalismo dependente, hegemonia do capital financeiro e ameaças ao sistema universitário

Muitas décadas afastam o momento atual do cenário sócio-político no qual Florestan Fernandes escreveu a obra que é base para as reflexões aqui presentes. Além da disposição temporal, é importante ressaltar que as distinções entre os momentos históricos e as realidades precisam ser consideradas. Entretanto, há aproximações bastante relevantes, tanto nas premissas ideológicas, quanto em aspectos que são perenes em ambas as realidades, neste caso, a submissão à lógica do mercado se destaca. Essa submissão, constante e comum desde os períodos das décadas de 1950 já analisadas por Florestan Fernandes até os dias atuais, incide diretamente ao menos em três bases da universidade que figuram com a necessidade de defesa: seu aspecto público, da gratuidade e consequentemente, de sua qualidade:

Em nosso entender, o desafio presente não vem da imperiosidade de mercantilizar o ensino oficial e da prática de uma tortuosa justiça às avessas. Ele provém das necessidades educacionais do povo. Impõem-se atentar para os problemas da educação popular e abrir todas as escolas, inclusive as universidades ao povo. Antes que isso possa acontecer, porém, é preciso que esse mesmo povo adquira a condição humana, inerente à civilização moderna. Não é abolindo, solapando e arrasando os serviços públicos nacionalizados que se poderá iniciar esse processo (Fernandes, 1975: 126).

          O excerto traz três chaves importantes para a defesa da universidade pública que continuam vigentes até os dias atuais. Primeiro, a denúncia da lógica da mercantilização que se instala na dinâmica do Estado; essa que assume diferentes contornos nos distintos momentos históricos, mas é uma constante na essência da ação de ampliação de fronteiras para a reprodução do capital. Segundo o que pode parecer simples, mas é essencial: a universidade, principalmente a universidade pública, pertence ao povo. Isso incide em aspectos como a necessidade de democratização do acesso e da permanência dos sujeitos das classes populares na universidade, mas também tem um aspecto que relaciona essa instituição ao desenvolvimento coletivo de uma nação, a partir de demandas estruturais do desenvolvimento local, objetivos que nem sempre são contemplados pela lógica universitária. E por fim, ligado ao apontamento anterior, a terceira chave apontada no excerto é a finalidade da universidade. Em uma palavra, Florestan expõe uma densa perspectiva teleológica orientadora de uma concepção de universidade: a necessidade de uma formação humana. Na citação, o autor vincula essa humanidade a uma condição de nação, a um objetivo de um Estado independente e ao conceito de civilização moderna, que vai muito além de uma conceituação formal e se vincula às perspectivas revolucionárias contidas na práxis de Florestan Fernandes.
          O debate efetuado no livro que analisamos se dá em torno da reforma universitária, proposta inclusive no sentido formal, culminando em legislações que a normatizaram. No momento atual, embora não haja uma reforma universitária em curso do ponto de vista formal, há vários dispositivos secundários e um conjunto de ações que pode caracterizar também uma reforma. Como afirma Freitas (2018), trata-se de uma reforma empresarial da educação, que atinge também, e talvez com mais propriedade, o ensino superior, pois é nessa etapa educacional que as medidas empresariais e mercantis tomam contornos mais privados e efetivos. Mas, em seu conjunto, as políticas educacionais e em particular as ações de ensino superior vem “sendo sequestradas pelo empresariado para atender a seus objetivos de disputa ideológica” (Freitas, 2018: 29). Ao expor a problemática, Leher (2019) evidencia a relação das incidências de ações do capital monopolista, em especial sua versão ligada à gênese e, mais atualmente, à intensificação do movimento neoliberal no sistema de ensino superior brasileiro e nas universidades. Esse é um dos pontos bem claros de intersecção que pode evidenciar a continuidade da reforma, que pode ser chamada de empresarial, que consta tanto do momento analisado por Florestan, como dos dias atuais. Ao se referir à mesma reforma central para os estudos do livro tomado como referência para as reflexões aqui constantes, Leher evidencia que a Reforma de 1968 e seus dispositivos complementares vieram “facilitando a exponencial expansão privada, medidas acompanhadas de alterações na legislação tributária, objetivando ampliar o repasse dos recursos públicos para as privadas” (Leher, 2019: 49). Trata-se da mesma prática das ações, pontuais, políticas e ideológicas que vêm sendo intensificadas pelas ações governamentais em curso.
          Ainda que possa parecer à primeira vista, reducionista, uma das defesas que emana da constatação de submissão da reforma universitária ao capital e ao mercado é a defesa da gratuidade no sistema de ensino superior. Essa observação é necessária, pois não é somente a cobrança direta que constitui o empresariamento da universidade. São muitos mecanismos indiretos que compõe tal situação, desde isenções, incentivos e concessões, até mesmo o “aprisionamento” da ciência e tecnologia por meio de investimentos privados no interior da coisa pública. Porém, a questão da gratuidade é uma defesa necessária, efetuada por Florestan e que, entendemos, precisa ser ratificada no momento atual.
          No Brasil, assim como em demais países de periferia no sistema mundo, a desigualdade é uma constante na realidade social, intensificada em relação aos países centrais. As desigualdades são reproduzidas em diversas áreas da organização social e, na universidade, não poderia ser diferente. Ocorre, em nosso país, um fenômeno bastante particular no sistema universitário público que, ao longo do tempo, acirra os debates, inclusive sobre a gratuidade da universidade pública, com o antigo argumento de que esse sistema reproduz a desigualdade oficializando a distribuição de vagas das áreas “nobres” para uma pequena elite privilegiada. Esse argumento é erroneamente universalizado e induz a uma compreensão equivocada de que a universidade pública paga por impostos por toda a população, é um espaço de uma elite privilegiada que não necessita de aportes estatais, sustentando a premissa que, mesmo a universidade pública, em nome de uma “justiça social” deveria ser paga, prioritariamente por aqueles que detém condições para tanto. Tanto na reflexão de Florestan, quanto nos dias atuais, essa situação precisa ser observada de forma dialética, mas sem abrir mão do direito à gratuidade, um dos alicerces da universidade pública. Como já dizia o texto analisado:

Em nossa opinião, a gratuidade do ensino superior deve ser defendida sem subterfúgios, mas também sem ilusões. É preciso que se tenha em mira que há, por trás da situação existente, muitos inconvenientes e várias distorções [...] A correção de seus efeitos negativos ou contraproducentes não deve ser procurada em sua eliminação pura e simples ou em seu solapamento sistemático (Fernandes, 1975: 138).

          Compartilhamos da opinião exposta acima, não somente na defesa da gratuidade, mas também na análise da questão da desigualdade que as universidades reproduzem em alguns cursos e áreas do saber. É um fato que determinados cursos, a exemplo de medicina poderíamos elencar mais cursos e áreas, mas esse é o exemplo mais clássico têm em seus estudantes e egressos, hegemonia de classe. Essa desigualdade também releva outras tantas do próprio sistema educacional, por exemplo, o abismo existente entre educação básica e superior no interior do sistema público de ensino, pois, o acesso às áreas “nobres” se dá, hegemonicamente, por aqueles que cursaram a educação básica nos sistemas privados de ensino.
          Frente a essa realidade desigual, que vai se agravar e muito com o fim da gratuidade do ensino público, levantam-se vozes a favor de uma regulação de tais situações. Nunca o fim da gratuidade é proposto de forma universal, e sim como um instrumento de equidade, para aqueles que detém condições de pagar. Trata-se de uma falácia. Uma vez flexibilizado, o preceito constitucional da gratuidade deixa de existir e abre-se, de forma inequívoca, uma nova modalidade, que aprofunda ainda mais as desigualdades: o ensino público pago. O debate sobre a defesa da universidade passa, ontem e hoje, por princípios claros no que tange o formato de acesso. “Primeiro, exigindo que a gratuidade do ensino superior seja mantida e completada por medidas que proporcionem efetivamente a democratização das oportunidades educacionais e da cultura” (Fernandes, 1975: 149). Essas medidas, que podem ser descritas como condições de permanência das classes populares na universidade, são necessárias e urgentes, pois são instrumentos de combate à desigualdade dos sistemas educacionais em primeira instância, mas são, de fato, condição de democratização do efetivo acesso ao ensino superior, independente da condição de classe dos sujeitos que o pleiteia.
          Não é só a cobrança direta, no conjunto da “reforma” atual, outros formatos privados são tão nocivos quanto uma privatização direta à população. Desde a questão conceitual, que é política e principalmente prática, de que a educação como um todo e a superior, de primeira mão, deixa de ser direito social e passa a constituir um rol de “serviços” que figuram no mesmo patamar de qualquer outra mercadoria, até os movimentos que atribuem fundos públicos aos sistemas privados de ensino. Essa primeira dimensão apontada, devidamente alicerçada nos organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) constitui-se na premissa basilar para a transformação de instituições como a universidade em uma mercadoria rentável para o sistema e, principalmente, para os detentores do capital. E a segunda dimensão aprimora e efetiva a primeira. Notemos que as políticas de educação superior, desde o Programa de Crédito Educativo, implantado ainda na ditadura, passando pelo (PCE/Creduc), pelo Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e atingindo uma expressão bastante efetiva com o Programa Universidade para Todos (ProUni) em plena gestão do Partido dos Trabalhadores, transferem fundos públicos para as instituições privadas de ensino superior e colocam a serviço do mercado o fundo público. Como afirma Lima (2006: 40), “o processo de reformulação da educação em curso, conduzido pelo governo Lula da Silva, possui um conjunto de aproximações com a reformulação implementada historicamente em nosso país”. E a história segue, agora com um período ainda mais crítico, no qual a tendência de privatização vem ganhando apoiadores no interior dos interessados por ela, ou seja, pela população.
          Uma variável torna a situação do ensino superior brasileiro ainda mais fragilizada. Na dinâmica do capital, existem os produtos e os subprodutos, adequadamente constituídos de acordo com a classe consumidora, o que se reproduz no caso do ensino superior. Existem instituições de excelência no campo privado, porém, ocorre que é uma divisão desigual, e que a maioria das vagas e ofertas estão postas à população em uma estrutura precarizada de qualidade questionável. E a modalidade de oferta à distância tem agravado ainda mais esse quadro, o que nos faz concordar com Roberto Leher que “O lado mais perverso da mercantilização da educação está seguramente nos cursos massivos a distância” (Leher, 2019: 173). Essa perversidade reside na oferta de um subproduto, destinado à classe que, necessariamente, em virtude de suas carências estruturais, necessitária de uma formação de excelência e que fosse ainda compensatória, encontram uma oferta formativa superficial, aligeirada, com padrões mínimos para a segurança do aprendizado e, no formato direto de mercadoria, no qual o cidadão paga duas vezes: uma para o conjunto de instituições privadas que adquirem dos fundos públicos benefícios, por meio dos impostos já pagos por esse cidadão e, também, na hora da quitação da mercadoria, no formato de mensalidade.
          Algumas dessas características ainda não estavam postas quando da análise efetuada por Florestan Fernandes na obra que aqui tomamos por base. Contudo, é necessário localizar que a gênese estrutural permanece intocada, que a submissão institucional dos organismos de Estado, no caso, a universidade à lógica de reprodução do capital. Ao adentrar na análise mais literal presente na obra que dá base a este trabalho, essa gênese será reiterada a cada argumento, o que nos dá segurança para afirmar que a defesa atual da universidade está em consonância com aquela que Florestan Fernandes empreendeu.



Notas dialogadas: universidade hoje e o livro do Florestan

A obra central para o diálogo aqui efetuado: Universidade Brasileira: reforma ou revolução?, publicado efetivamente como livro em 1975, mas constituído desde a década anterior, tem o subtítulo provocativo ao debate que está posto na centralidade da obra: a reforma universitária em curso à época. Porém, existe uma gama de análises contidas na obra, que vêm sendo retomada e debatida academicamente ao longo dos anos posteriores (como é possível verificar na produção citada e demais) e evidenciam diversos elementos: que a obra extrapola sua temporalidade, que a reforma avaliada se efetivou como uma “reforma consentida”, que a reforma necessária esteve, está e estará por se fazer e, sobretudo, que a universidade brasileira corre riscos e é necessário defendê-la.
          Que a reforma da universidade, em um conceito mais amplo que uma mudança no ordenamento legal, é base da obra analisada é ponto pacífico. Mas um dos objetivos do presente texto é a utilização atual das bases postas por Florestan. Assim, pode-se afirmar que temos em curso uma reforma da universidade? Sim e advém de antes do atual governo. Ainda que o recém anunciado programa “Future-se”, do Ministério da Educação, possa sinalizar uma condensação dessa reforma, há tempos a universidade brasileira caminha a passos largos em seu processo de mercantilização. Como exposto na obra de base:

De outro lado, porque medidas do teor apontado objetivam fazer da universidade uma fronteira da livre empresa, sem encargos nem riscos equivalentes da iniciativa privada. No fundo, ocorreria uma dupla privatização do público na esfera do controle pessoal e na da pesquisa científica e tecnológica, sem qualquer compensação para o setor público e sem qualquer espécie de reciprocidade (Fernandes, 1975: 227).

          Ficaremos com Florestan em seu conceito de universidade como “fronteira da livre empresa”, que demarca a necessidade cíclica do próprio sistema de absorver relações, instituições, em uma “coisa” chamada mercadoria. Essas relações, por permanecerem centrais para os dias atuais, receberão tratamento pormenorizado na construção do presente texto. Aqui, é preciso destacar a efetividade da pergunta, reforma ou revolução, que é central para a obra florestiana e permanece central para o debate sobre a universidade. Calcada em uma densidade teórica que vai além da obra, seja de Florestan, seja de Rosa Luxemburgo, e permeia todo aparato materialista histórico-dialético de análise, a completude das dimensões postas pela questão extrapolam os espaços deste artigo. Ao delimitar e simplificar a questão, é necessário, frente à onda conservadora que nos assola, no mínimo, reestabelecer as dimensões democráticas da sociedade brasileira, pois: “A universidade está sufocada e a reforma universitária é contida e conturbada porque não conseguimos concluir a revolução republicana e organizar uma sociedade nacional democrática” (Fernandes, 1975: 239). É justamente essa revolução, ainda inconclusa há quase um século e que, ainda nos dias atuais, sofre ataques incessantes e encontra-se ameaçada pela hegemonia do pensamento conservador, que, além de manifestar-se como expressão da maioria da população do país no último pleito eleitoral, traça contornos de institucionalidade nas ações referente à reforma universitária, em marcha no cenário atual.
          A característica mais próxima dos dois tempos históricos e narrados com muita ênfase por Florestan é o conservadorismo. No que tange aos dias atuais, a onda conservadora não só alicerça ações de esvaziamento de investimentos e os cortes às universidades, como têm criado um impacto negativo em relação à opinião pública. Temos tido uma intensificação de ideias de que o mundo universitário é ligado ao desperdício de dinheiro público, de maus usos e desrespeito às estruturas estatais  das quais é evidenciado o sucateamento, oriundo sim, do ataque às universidades. Além disso, também temos tido a construção de um imaginário social, calcado na moral, principalmente de cunho religioso, na qual a universidade é antagonista da prática religiosa, espaço de promiscuidade e território de livre circulação de drogas ilícitas. Essa narrativa tem ganhado espaços significativos nos meios de comunicação social contemporâneos, nas redes sociais e atingida parte da opinião pública, que liga universidade pública a tais (des)informações. Porém, o fundo de todas as questões suscitadas superficialmente junto à população em geral objetiva, de fato, imprimir um formato de controle às instituições estratégicas para o desenvolvimento de um projeto sociedade, tal como são as universidades.

No fundo, tentam introduzir em nosso meio uma nova e perniciosa modalidade de controle o controle ideológico pelo qual esperam assegurar-se numa drástica e ilimitada tutelagem sobre a composição, a estrutura e o funcionamento da universidade brasileira. Trata-se de um desígnio reacionário, porque pressupõe uma volta ao passado e, o que é pior, às práticas adulteradas que nele não encontravam nem poderiam encontrar eco. Deste ângulo, é fácil avaliar-se a inconsistência, o teor destrutivo e o caráter inaceitável das manipulações desencadeadas, verdadeiramente incompatíveis com o ideal de universidade que estávamos formando no Brasil e com qualquer ideal de universidade digno desse nome (Fernandes, 1975: 28).

          É importante destacar o objetivo central do controle ideológico atrelado a uma expectativa de orientação fundamental para direcionamento tanto da estrutura estatal como da universidade que, nos casos das épocas demonstradas, estão atreladas às perspectivas de mercado. Assim, a imputação de uma visão desqualificada no imaginário popular é somente uma estratégia de alcance da mercantilização do ensino superior. E, na mesma medida, é necessário constatar que existe o claro objetivo de controle ideológico no interior do espaço universitário, fato que, como demonstrado por Florestan, é diametralmente oposto de qualquer concepção de universidade. Em tempos de crescente financeirização do capital, de submissão de toda lógica estatal e política ao mercado e à sua lógica financeira, é fácil perceber que o controle ideológico pode se vincular à dinâmica de financiamento das universidades, como ocorreu na conturbada justificativa e posterior prática de cortes de verba das universidades federais no início de 2019, as quais, segundo o titular da pasta do Ministério da Educação, à época, Abraham Weintraub, foram penalizadas pela “balburdia”. Em sua expressão literal ao jornal Estado de São Paulo: “Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas”.6 Talvez essa seja a melhor materialização do apontamento efetuado na citação da “modalidade de controle ideológico” efetuada por parte do Estado.
          É fato que o conservadorismo vai muito além das instituições, incluindo aqui a universidade. Essa é outra assertiva que Florestan realiza com precisão em suas indicações e que extrapolam o lapso temporal, inserindo-se perfeitamente na realidade cotidiana brasileira. As ações, políticas adotadas, projetos apresentados como alternativa no Brasil de hoje tornam mais agudo o “caos” instaurado no país. O conjunto de ações estatais promovidas atualmente, intensificam a concentração de renda interna e a dependência internacional, na exata medida que fortalece a tese florestina de capitalismo dependente, já indicada em constatações anteriores:

Foi o “jogo conservador” que lançou o Brasil no caos que nos encontramos, nele nada podemos esperar de bom ou de construtivo. Se tiver continuidade, principalmente se ele conseguir renovar-se pela cooperação dos intelectuais, a sociedade brasileira estará condenada ao subcapitalismo e aos dilemas do subdesenvolvimento de modo permanente, como se fosse seu estado natural (Fernandes, 1975: 208).

          Os complexos conceitos de subcapitalismo ou subdesenvolvimento, muito usados à época delimitada na obra analisada, estão relacionados diretamente à categoria capitalismo dependente, que é chave para compreensão atual da realidade, nacional e latino-americana em sua maioria. E também é um questionamento para o avanço de qualquer universidade: ela contribui para o desenvolvimento social, cultural, político e tecnológico de seu povo? Relacionadas a essa questão, cabem duas reflexões: a primeira é, como já se desenha, uma contundente crítica tanto ao modelo de desenvolvimento adotado em períodos distintos na sociedade capitalista, com seu caráter predatório e alienante. De outro lado, em termos de perspectiva, encontram os limites, mas, sobretudo, as possibilidades de se pensar o desenvolvimento para além dos limites do capitalismo e o lugar que a universidade ocupa ou pode ocupar nesse processo.
          O que se tem como constante, vinculado ao processo alienante da cultura conservadora é uma prática atemporal de dependência em diversos aspectos, principalmente na dimensão educacional. Recorrentemente, “reaparece, por trás da alienação, de uma forma típica de entreguismo e de submissão passiva aos controles educacionais e culturais externos” (Fernandes, 1975: 138). Essa submissão é formadora e age no contexto social como ação cultural de dependência, o que fez Roberto Leher escrever sobre a universidade e a heteronomia cultural no capitalismo dependente (2018) e evidenciar as implicações (de)formativas desse formato de universidade. Salvaguardados os formatos de avanço do processo industrial, Florestan localiza exatamente quem deseja e sustenta os processos de dependência presentes na universidade, ontem e hoje. “O que se faz é predispor o País para aceitar requisitos educacionais e culturais da civilização industrial a partir de uma situação dependente crônica, aparentemente desejável aos olhos dos círculos empresariais e conservadores” (Fernandes, 1975: 138). Esses círculos empresariais, na atualidade, estão ainda mais ávidos para manutenção de determinadas dependências, principalmente à lógica de mercado imposta, cada vez mais, ao sistema universitário brasileiro, o que está, no limite, atendendo ao formato de dependência clássica da lógica imperialista, pois, a cada dia, é mais comum conglomerados internacionais vinculados ao capitalismo central avançarem na compra de estruturas integrantes do sistema universitário nacional.
          Esse desenvolvimento dependente é nocivo para qualquer proposta que tome como central mulheres e homens como parâmetros de qualidade para se desenvolver um estado. A questão posta entre os limites e possibilidades da universidade frente ao desenvolvimento do país, ainda que no período anterior, cabe também para os dilemas que se enfrentam na atualidade.

Nas fronteiras do presente e do futuro, a universidade brasileira não deverá contentar-se em contribuir para “acelerar o desenvolvimento”. Ou ela será capaz de produzir um novo padrão intelectual de desenvolvimento educacional e cultural “autônomo” ou ela submergirá outra vez, tragada por um processo de senilização precoce que fará dela um “rebento moderno de estruturas arcaicas” ou uma “objetivação arcaica dos tempos modernos” (Fernandes, 1975: 161).

          Ainda que o caráter hegemônico da universidade e de todos os sistemas sob a égide do capitalismo carregue em si o caráter dependente, há perspectivas de a universidade ser espaço esperançoso para a construção de uma alternativa de desenvolvimento que leve em conta a amplitude das potencialidades cultural, social e política contidas na sociedade brasileira. Esses binômios dialéticos são chave para o avanço das forças sociais emancipatórias no momento atual: autonomia ou dependência, reforma ou revolução e fatidicamente, democracia ou barbárie.
          Ainda que não desenvolvido pormenorizadamente, ou com a intenção de formular um conceito que dê base para uma categoria de análise, Florestan vai pautar a necessidade da construção de uma Universidade Multifuncional que, na maioria das vezes, é chamada também de integrada e multifuncional. A terminologia pode gerar ainda muita controversa por parte dos analistas do ensino superior, mas, do ponto de vista da produção e da expectativa de uma universidade que promova a formação omnilateral dos sujeitos, é um conceito que se vincula aos anseios de Florestan de uma universidade moderna no contexto da reforma que era pautada pelo movimento de defesa da universidade e, desse modo, com ênfase em um modelo independente. “Por isso, a universidade integrada e multifuncional propõe-se o objetivo de modernizar e intensificar o ensino, bem como se impõe a missão de produzir conhecimentos científicos e tecnológicos de forma independente” (Fernandes, 1975: 89).
          A questão da integração está ligada a uma crítica às diversas “universidades” que existem no interior da estrutura universitária, em sua maioria, destacando o caráter de desigualdade estrutural em seu interior. Cursos de humanas, de profissões menos “nobres”, seguimentos que são secundarizados também na estrutura de apoio e fomento da ciência e tecnologia nacional, compõem estruturas distintas no interior da universidade, à margem dos cursos “nobres”, que constituem o núcleo de poder institucional.
          A multifuncionalidade não reside somente na abrangência formativa da universidade; mas sim, na conceituação de práxis e toda sua complexidade e densidade em relação à formação humana, que se quer omnilateral, completa, abrangente das várias dimensões do sujeito histórico, social, político e também técnico e não restrito somente ao exercício profissional de determinado segmento. No conjunto, a universidade integrada e multifuncional se vincula à necessidade de mudança estrutural, tanto da própria instituição, tanto na sociedade em que está inserida.

A universidade integrada e multifuncional não é uma construção artificiosa de intelectuais desarraigados e dissidentes. Ela é uma resposta, a um tempo “estrutural” e “histórica” às exigências de um padrão de civilização, cuja assimilação está desencadeando uma revolução econômica, social e cultural na sociedade brasileira (Fernandes, 1975: 172).

          Há uma tendência em curso em criminalizar as universidades e, até mesmo, de minimizar ou anular o papel do conhecimento para o desenvolvimento humano e social. E essa assertiva não é exagerada, vide afirmações oficiais do ministro de Estado sobre “cultivo” consumo e distribuição de maconha7 no interior das universidades, ou ainda, reações adversas de segmentos da sociedade sobre a universidade pública. Essa tendência está diametralmente oposta às proposições de Florestan Fernandes sobre a universidade integrada e multifuncional. Com tais características, a universidade como instituição social seria partícipe de um projeto de sociedade revolucionário, com incidências em seu padrão civilizatório, que iriam além da formação profissional, mas somariam ao desenvolvimento social como um todo, desde os debates políticos estruturais, culturais, além dos aspectos econômicos.

Para concluir e defender a universidade brasileira

O conjunto das reflexões expostas evidencia que muito da obra “Universidade Brasileira: reforma ou revolução”, encontra-se tão vigente hoje como nas décadas em que foi escrita. Porém é necessário destacar também os distanciamentos, não somente os temporais e das condições históricas de cada momento, alguns conceitos que também necessitam ser adaptados ao panorama atual. Na obra de Florestan, um forte debate era efetuado em virtude da reforma institucional, que ocorria naquele momento histórico. As características desse processo, seu formato frente às aspirações da sociedade civil, as correlações de força, culminaram, analiticamente, no conceito de reforma consentida, utilizado por Florestan e também reproduzido em outras análises sobre o tema, como em Lima (2006). De modo simplificado, é a reforma para não mudar, ou ainda, uma ação dissimulada das forças do poder para manutenção de um projeto de universidade dependente. Nos atuais, não se encontra uma proposição documental de reforma, mas, como afirmamos, ocorre por meio de ações, desde uma esfera mais ampla, como a concepção de educação como serviço, passando pelo adensamento do formato mercadoria no ensino superior nacional, investimentos de fundo público, diretos e indiretos nesse “mercado” ou até mesmo programas governamentais mais elaborados diretamente com tal perspectiva, como é o “Future-se”. E é justamente aqui que pode ser evidenciada uma diferença substancial: a reforma deixa de ser consentida no âmbito do Estado e passa a ser induzida por esse. O cenário atual abandona a ideia de pequenas concessões para a manutenção de um projeto de universidade em sua essência e passa para a defesa direta da inserção na lógica mercadológica dos “produtos” relativos à educação superior; defesa que, para os defensores da universidade pública, gratuita, laica, de qualidade e universal, é um ataque
          A superação do “mundo da pseudoconcreticidade” e o desvelamento da realidade (Kosik, 1976) no que tange a essa submissão da educação, do ensino superior ao mundo da mercadoria e aos interesses dos empresários é uma atividade importante na defesa da universidade pública. Porém, acreditamos que a conclusão deste debate necessita avançar no reforço das características da instituição que defendemos e constituir-se como instituição, ou seja, indicar qual “reforma” que, no caso, é: que revolução se defende para a universidade brasileira.

Por isso, quando falam ou lutam pela reforma universitária não querem apenas “reorganizar” formalmente o ensino superior. Visam construir uma universidade totalmente nova – educacionalmente criadora, intelectualmente crítica e socialmente atuante, aberta ao povo e capaz de exprimir politicamente seus anseios mais profundos (Fernandes, 1975: 60).

          O pessimismo da inteligência gramsciana nos coloca em um paradoxo frente às pretensões expostas acima. Nos dias atuais, a defesa da universidade, mesmo em seu “velho” modelo atual, ainda que distante de “universidade nova” postulada é uma necessidade emergencial. Porém, como ensina o movimento dialético, construir a universidade nova é também parte de um movimento de defesa da universidade pública. Ao evocar um ensino superior “intelectualmente crítico”, Florestan auxilia na urgente função dessas instituições no combate ao emaranhado opinativo, intensificado com o uso de novas tecnologias, de redes sociais que assume, no Brasil, hoje, uma tonalidade oficial, chancelada pelo presidente da república. Essas opiniões, reforçadas por uma política de falsas notícias, são anticientíficas e, como um apelo ideológico, enquadram todo e qualquer pensamento crítico como inimigo. Vale ressaltar que, além dessa característica, o conjunto do “discurso oficial” é elaborado a partir da porção hegemônica da luta de classes, de preconceitos de toda ordem, incluindo a naturalização da misoginia, xenofobia e também, com características criminosas de apologia a práticas repugnantes como a tortura. Frente a esse cenário, o intelectualismo crítico é um movimento necessário a ser tomado pela universidade.
          O excerto ainda evidencia a necessidade de uma universidade socialmente atuante e aberta ao povo. Tal postura se vincula ao desenvolvimento de intelectuais críticos que, na universidade atual, tendem a se isolar das demandas materiais e concretas da população. É necessário enfatizar que essa premissa se vincula à concepção de um projeto democrático e ascendente. Postulado e constituído a partir das necessidades concretas do espaço nacional, de forma autônoma e socialmente inserida, uma realidade que, se consolidada, fortalece a defesa da universidade por todo o conjunto da sociedade. Deste modo, o conjunto de ações, conceitos e práticas descritas durante o texto nos exige a afirmação de uma instituição a ser construída coletivamente.
          A universidade pública é o cerne de uma sociedade que se quer próspera em todos os aspectos, com centralidade no pleno desenvolvimento humano. Vislumbramos essa universidade livre, de acesso irrestrito, atuante nos mais diversos segmentos da sociedade, sobretudo junto às comunidades que a suportam; pedagogicamente comprometida com a formação humana, que inclui sólidos alicerces científicos, alta capacidade técnica para o exercício profissional, sensibilidade cultural aguçada e, principalmente, vínculos sociais inabaláveis; intelectualmente soberana, destinada a orientar o desenvolvimento técnico, científico e inovador de toda a nação; crítica, a ponto de debelar qualquer resquício viciado do autoritarismo que cerceia a capacidade autônoma do pensar; e, por fim, intransigentemente democrática, em seu interior, nas suas relações com a sociedade e na restituição da produção do saber a quem é de direito: o povo.

*Fernando-José Martins
Brasileño. Doctor en Educación por la Universidad Federal de Rio Grande do Sul, Brasil con complementación por la Universidad de Porto, Portugal. Profesor Asociado, Programa de Posgrado (Maestría y Doctorado) en Sociedad, Cultura y Fronteras, Universidad Estadual del Oeste de Paraná, campus de Foz do Iguaçu, Brasil. Temas de investigación: América Latina, movimientos sociales, educación y universidad. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9924-4678. fernandopedagogia2000@yahoo.com.br
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1. Indicaremos por meio de publicações nos maiores portais de informações, referências a cada fato citado como exemplo no referido artigo. No caso da presente menção, conferir em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/10/universidades-de-todo-o-pais-sao-alvo-de-acoes-policiais-e-da-justica-eleitoral.shtml> [Consulta: 10/20/2020]. Regresar

2. <https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2019/05/28/governo-pede-que-stf-libere-acoes-policiais-dentro-de-universidades.ghtml> [Consulta: 10/20/2020]. Regresar

3. O plano de governo está disponível oficialmente no seguinte domínio: https://n9.cl/utl3m.Regresar

4. <https://www.cartacapital.com.br/educacaoreportagens/as-universidades-devem-ficar-reservadas-para-uma-elite-intelectual-diz-ministro-da-educacao/> [Consulta: 10/20/2020]. Regresar

5. <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/08/10/ministro-da-educacao-defende-que-universidade-seja-para-poucos.ghtml> [Consulta: 10/20/2020]. Regresar

6. <https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579> [Consulta: 10/20/2020]. Regresar

7. Notícia veiculada pelo próprio Congresso Nacional: <https://www.camara.leg.br/noticias/625418-ministro-da-educacao-reafirma-que-ha-plantacoes-de-maconha-nas-universidades/>. Regresar


Referencias

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Fernandes, Florestan (2020), A revolução burguesa no Brasil: ensaio de intepretação sociológica, Curitiba, São Paulo, Kotter, Contracorrente.
Fernandes, Florestan (2013), Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, São Paulo, Global.
Fernandes, Florestan (1975), Universidade Brasileira: reforma ou revolução?, São Paulo, Alfa-Ômega.
Freitas, Luiz Carlos de (2018), A reforma empresarial da educação. Nova direita, velhas ideias, São Paulo, Expressão Popular.
Frigotto, Gaudêncio (2020), “O ‘desafio educacional’ de Florestan Fernandes”, Revista Desenvolvimento & Civilização, vol. 1, núm. 2, pp. 25-35.
Kosik, Karel (1976), Dialética do concreto, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Leher, Roberto (2019), Autoritarismo contra a universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública, São Paulo, Expressão Popular.
Leher, Roberto (2018), Universidade e heteronomia cultural no capitalismo dependente, Rio de Janeiro, Consequência.
Leher, Roberto (2012), “Florestan Fernandes e a defesa da educação pública”,  Educação & Sociedade, vol. 33, num. 121, pp. 1157-1173.
Lima, Kátia Regina da Silva (2006), “Capitalismo dependente e reforma universitária consentida: a contribuição de Florestan Fernandes para a superação dos dilemas educacionais brasileiros”, em Angela Siqueira, Lucia Maria Neves (orgs.), Educação superior: uma reforma em processo, São Paulo, Xamã.
Saviani, Dermeval (1996), “Florestan Fernandes e a educação”, Estudos Avançados, vol. 10, num. 26, pp. 71-87.


Cómo citar este artículo

Martins, Fernando-José (2023), “Em defesa da universidade brasileira: impressões contemporâneas a partir da obra de Florestan Fernandes”, Revista Iberoamericana de Educación Superior (RIES), vol. XIV, núm. 40, DOI: https://doi.org/10.22201/iisue.20072872e.2023.40.1552 [consulta: fecha de última consulta].

Title: Em defesa da universidade brasileira. Impressões contemporâneas a partir da obra de Florestan Fernandes
Author:
Subjects: Estado ; público ; universidade ; Brasil
Is Part Of:
Revista Iberoamericana de Educación Superior (RIES), , Vol. 14(40),
p.189-203 [Peer Reviewed Journal]
Description: A universidade pública no Brasil tem enfrentado, desde a crise econômica iniciada em 2014, questionamentos e cortes. Os questionamentos são administrativos e tomaram o imaginário social com aderência da opinião pública. O atual governo brasileiro potencializou este quadro, ampliando cortes e intensificando críticas com elementos ideológicos e juízos de valores em relação à universidade. Para contrapor esse “ataque” à universidade, realizaremos uma análise a partir da obra: Universidade brasileira: reforma ou revolução?, escrita em outro contexto histórico, porém com teorizações e análises aplicáveis ao momento atual. É utilizada a análise bibliográfica e uma sondagem dos meios de comunicação para evidenciar as manifestações públicas do governo acerca da temática. Por fim, visualiza a contribuição de Florestan Fernandes para a análise da universidade pública atualmente.
Publisher: Universia, IISUE-UNAM
Source: Universia, IISUE-UNAM
ISSN: 0163-9374 ;
E-ISSN: 1544-4554 ;
DOI: 10.22201/iisue.20072872e.2023.40.1552